terça-feira, 10 de agosto de 2010



Minha História de Mario Sergio Limberte

(Folha de São Paulo / Cotidiano C9/ Saúde do dia 08/08/2010.)



Resumo


Há três anos, o dentista Mario Sergio Limberte perdeu seu caçula, vítima dos efeitos dos antipsicóticos. Por dez anos, o pai mergulhou na prática e na teoria da doença. Devorou a literatura médica, ouviu as vozes todas da esquizofrenia. E preservou o elo com o filho. No livro 'Cadê Minha Sorte?' (Scortecci), ele mostra sua luta contra o transtorno do filho, e passa know-how. Hoje, briga para mudar o nome da doença-estigma.



MINHA HISTÓRIA



Nenhum pai imagina ter um filho com doença mental. Durante toda a vida do meu filho após o diagnóstico, estudei a esquizofrenia. Importava livros. Os livros médicos brasileiros são ótimos, mas escritos por pais, não achei.



André foi um menino sadio, alegre. O caçula. Hoje, teria 33. O outro tem 35.Teve uma infância feliz, posso dizer. Boa escola, viagens para a Disney...



Lá pelos 14 André ficou um pouquinho estranho. Não beijava mais a mãe. Quantos filhos não beijam a mãe, ainda mais na adolescência? Isso é o pior dessa doença. Vem vindo. Chega insidiosa, traiçoeira, confundindo.



MENINO BONITO



Mas André foi passando de ano. Quem sofre dessa doença não consegue concluir curso universitário. Há perdas cognitivas. Mas ele concluiu o de odontologia. E se recusou a ir na formatura.



Começou então o isolamento social. Era muito bonito, assediado pelas meninas. Passou a se fechar no quarto, não atendia mais telefone. Pensamos que era droga. Aos 16, contou à mãe que ouviu vozes. Não demos importância. Hoje, sei que ouvia.



Depois que o perdi, abrindo as gavetas dele, descobri poemas e uma história gozada, que deu nome ao meu livro: "Cadê minha sorte?"



O André sempre trabalhou no teatro das escolas. Decidiu que queria ser o melhor ator em Hollywood. Era já um delírio de grandiosidade, mas eu não percebia assim. Incentivei ele. E ele foi, então, estudar teatro e cinema em Los Angeles. Mas quando viajou, seu isolamento já estava patente.



André ficou dos 19 aos 21 nos EUA. Fui visitá-lo. À noite, vi que ele acordava muitas vezes, ia ao banheiro e ligava o chuveiro. Há um sintoma: o doente bebe muita água, compulsivamente. Eu me preocupei em não invadir. Não perguntei.Voltei preocupado. Comprei um livro sobre esquizofrenia. Fiquei estarrecido. Não contei para minha mulher. Entrei em depressão. Eu tinha vontade de morrer por covardia, para sair da briga. O antidepressivo me ajudou. Pensei: se morro, quem cuida do meu filho? Um dia, disse que não o sustentaria mais do que quatro meses lá. Ele veio. Estava magro para burro.



No dia seguinte da sua chegada fomos almoçar num restaurante. Pegou um palito da mesa e disse: "Pai, quando eu sair daqui, os garçons vão disputar esse palito, só porque toquei nele".Delírio de grandeza. Também tinha delírios de perseguição, alucinações. Dava risadinhas, eram vozes debochando.


Uma noite, foi ao nosso quarto, começou a falar que tinha vindo salvar o mundo. Minha mulher, ingenuamente, interferia. Ele dizia: "Cala essa boca". Eu anotava tudo para levar ao médico. Excitado, André andava do quarto para a sala, falava da guerra do Iraque... Até que, exausto, dormiu numa poltrona. Deitamos no chão, ao lado dele.


Voltou dia 9 de novembro, no dia 14 já foi internado compulsoriamente.Foi um dos piores dias da minha vida. Fiz uma armadilha para meu filho. Contratei ambulância, escolhi clínica. Não é fácil internar um filho. O médico disse que ele corria risco de vida. Só então contei para minha mulher. Ficamos escondidos. Vimos a ambulância chegar, ele sair com os enfermeiros. Aplicaram injeção, mas nem precisaria. Foi pacífico. Achou que era um sequestro.


Fui com meu carro atrás da ambulância. A médica da clínica fez perguntas para a gente. Falou: "Seu filho tem esquizofrenia, uma doença incurável". Ele tinha 22 anos. Sim, suspeitávamos, mas tudo tem um jeito para se falar. Aquilo mudou nossa vida. Ficou tudo muito mais triste, mas eu sabia agora com o que estava lidando. Precisa ter esclarecimento para não achar que o seu filho é um vagabundo. Passei dia e noite lendo. Conheci bem as várias hipóteses, os remédios.


Ficamos quatro dias sem poder vê-lo. Ele mandou um bilhetinho pedindo desculpa pela noite do surto. Pensou que foi internado como uma punição, como um castigo. Depois, quando permitiram visita, meu filho, grogue, disse: "Pai, você não podia fazer isso comigo. Acabou com minha vida".


Passaram-se dez anos assim: toma medicamento, melhora, piora. André nunca me perdoou pela internação. Duas vezes me disse que estraguei a vida dele. Um pai que tem um filho com essa doença não pode ter medo de ser odiado. Mesmo assim, tenho culpa.


EFEITOS COLATERAIS


A medicação antipsicótica funciona só nos sintomas positivos (delírios e alucinações). Na parte cognitiva, não. Naquilo que incapacita, nada. Estamos longe do remédio ideal. Os efeitos colaterais são horríveis. O doente passa a lutar contra a doença e contra os efeitos da medicação, que vão de constipação intestinal a impotência sexual.



Os médicos não dão importância a essas comorbidades. Como a doença é a pior coisa que existe, psiquiatras focam nela, não no doente. O psiquiatra não toma a pressão, não pede exames, quando é sabido que cardiopatias são a segunda causa de morte dos doentes. A primeira é suicídio. Fala-se muito nos livros médicos que os remédios dão condições de se ter uma vida razoavelmente boa. Mentira. A maioria dos doentes não se casa, é solitária.



André tinha namoradas no começo. Depois, não saía mais com meninas. Perguntei para o médico sobre a parte sexual, pedindo para ele ser ético, dizer só o que eu precisasse saber para ajudar. E o médico me disse que meu filho tinha retardamento do orgasmo, mas isso não era nada. Se o André falasse sobre isso mais uma vez, poderia receitar Viagra. Falou como se fosse uma gripe.
Outro efeito é a obesidade.


O NOME DA DOENÇA


Não contei ao André o nome da doença. Segundo alguns autores, se o doente sabe, fica melhor para enfrentar. Outros dizem que essa informação leva mais rápido ao suicídio, se o doente é culto e tem noção das limitações.



O médico explicou o distúrbio químico no cérebro dele, o excesso de dopamina. O problema é o nome da doença. Se falo que meu filho tem esquizofrenia, a tradução é "louco". Não é só semântica. Precisa mudar. Ninguém na família ficou sabendo da doença do André, muitos amigos também ficaram sabendo só no velório. Por que escondi? Porque se contasse todo mundo ia se afastar, o isolamento seria ainda pior.


Na fase em que ainda não tinha palpitações por causa do remédio, o André até foi em baladas, se divertiu. Aos poucos, veio o sintoma da pobreza de palavras. Falava pouco. Depois, catatonia. Ficava na poltrona, em posição fetal, imóvel. Ele tinha alucinações visuais. Cismava com cores. Uma vez disse que estava vendo tudo cor-de-rosa. Sinal de que a dose não era mais suficiente. Aí aumenta a dose, e o que acontece? Depressão e culpa. "Pai, eu não venço na vida, faço os testes e não me aceitam", ele me dizia. Eu falava que vida de artista era difícil mesmo, precisava paciência. Meu filho passou várias fases de depressão e melhora.


DIA SOLITÁRIO



O dia da sua morte foi um domingo como outros. Dias antes, se queixou de taquicardia, mas tinha muitas palpitações sempre. Almocei com ele no clube, deixei em casa e fui visitar minha mãe. Domingo é um dia solitário para todo mundo. Para ele, mais. Depois, sempre pegava ele para tomar cafezinho no shopping.



Eu que o encontrei. Achei que dormia. Sacudi, gritei. Estranho ter nas mãos seu filho morto. Que sensação. Muitos doentes morrem do coração. Muitos se suicidam. Vivem menos que a maioria. Não escrevi o livro por revolta. Não estou ligado a nada. Quis contar a história, talvez ajude outros pais."

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