terça-feira, 8 de junho de 2010

epitáfio escrito por Carlos Heitor Cony para “ Mila”, o seu animal de estimação


Essa é uma prática textual hoje rara nos jornais brasileiros, com exceção da Folha de S. Paulo, que diariamente publica suelto ao lado dos editoriais. De vez em quando, aparecem textos que podem figurar entre as melhores páginas da literatura, a exemplo do epitáfio escrito por Carlos Heitor Cony para “ Mila”, o seu animal de estimação:


Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me para dono. Pior: me aceitou.
Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o vento?


Amá-la – foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.


Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu “fumos fidalgos”, como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era uma lady, uma rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.


No sábado, olhando-me nos olhos, co seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. Bem maios do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a até o fim.


Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu acabasse a crônica para ficar com ela.


Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei- a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade ( Folha de S. Paulo).


Trecho do livro de Muniz Sodré: "A Narração do Fato" - Editora Vozes

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